Tenho dito que escrever é a arte de reunir palavras. Mais que isso, é a habilidade de juntar letras para formarem palavras. Palavras que se soltas nada dizem, mas que se bem escolhidas e colocadas umas ao lado das outras, de forma harmoniosa, são capazes de constituir sentenças e de tocar as pessoas. Causam emoção e propiciam o prazer da leitura.
As histórias precisam ser contadas e repassadas pois elas detêm uma força poderosa. É através dela que os mais velhos repassam os ensinamentos às novas gerações e os povos repassam seus costumes perpetuando suas memórias.
Falar sobre história é falar sobre lugares, falar sobre gente, pois são as pessoas que dão identidade aos lugares.
Alguns leitores me abordam dizendo que não acreditam que em Pinheiro, minha terra natal, tenha tantos personagens e tantas histórias! Não confirmo, nem nego, mas o certo é que as estórias por mim narradas estão armazenadas em algum lugar de meu córtex cerebral e que por vezes faíscam lá de dentro, dando o sinal de que preciso compartilhá-las com meus leitores.
Por menor que seja o lugar onde nascemos e por mais longínquas paragens tenhamos andado, carregamos pelo resto de nossas vidas, o cheiro da terra, a tonalidade da luz, o frescor da brisa e o brilho das estrelas no firmamento. Costumo dizer que saí de Pinheiro, mas Pinheiro não saiu de mim.
O Ítalo Calvino em seu livro Cidades Invisíveis, na pele do personagem viajante veneziano Marco Polo, responde ao Kublai Khan ao ser perguntado se ele viajava para reviver o passado ou reencontrar o futuro? − “O viajante reconhece o pouco que é seu, descobrindo o muito que não teve e o que não terá”.
Graças ao contador de estórias, que com sua força invisível move a mente dos leitores, são registradas as passagens das pessoas que deixaram sua marca no ambiente em que viveram.
A uma certa época, conheci um músico que nas suas horas vagas era um pequeno produtor rural, ou vice-versa. Não posso precisar a ordem. Chamavam-no de Canígia. Aparentava uns sessenta anos. Magro, alegre, sorriso contido, caminhava a passos largos em companhia de seu inseparável instrumento musical.
Aos sábados, após ter vendido na Feira os seus produtos agrícolas provenientes da Ave Maria, localidade onde tinha sua pequena propriedade, ele vestia uma camisa de manga comprida, colocava seu chapeuzinho de palha, tipo coco, e desembrulhava de dentro de um saco de tecido uma velha rabeca. Antiga, velha e toda remendada!
Ocorria naquele momento a metamorfose do agricultor em músico. Além de músico ele era também compositor e sempre que me encontrava dizia:
− Doutor, tenho uma gravação nova! Na verdade, era uma nova composição.
Não ingeria bebida alcoólica, mas era louco pelo guaraná Jesus que o acompanhava enquanto apresentava suas novas gravações.
Enquanto músico, tinha uma característica muito interessante. Antes de tocar, ele primeiro contextualizava a história que o teria inspirado a compor essa nova gravação. E somente após ter sido entendida por todos, a rabeca fazia-se ouvir.
Sim! Tinha algo mais inusitado ainda. Primeiro ele declamava a letra toda marcando o compasso binário batendo com a mão em cima da sua própria coxa. Depois, entoava a melodia. Com uma peculiaridade: Enquanto cantava ele não tocava e quando tocava, não cantava!
Relembro aqui a estória, narrada por ele,do boletim de ocorrência que teria feito ao delegado por ocasião do roubo de seu boi-cavalo.
“Eu vou já é pra cidade, vou falar ao delegado
Que roubaram o meu boi cavalo e cortaram foi o rabo
Eu quero o rabo, eu quero o rabo, eu quero o rabo do meu boi todo emendado...
Os acordes que emanavam de sua rabeca vibram até hoje em minha memória. Saudoso Canígia! Foi-se sem que tenhamos registrado sua vasta obra popular.
Uma pena!
Ex-deputado estadual, membro da Academia Pinheirense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão.
JOSÉ JORGE LEITE SOARES